Meus passos foram calmos e em certo ponto era a primeira vez que eu agradecia ao fato de ter um lago ali por perto. Era engraçado como a visão de uma grande superfície cristalina, parecia acalmar os corações melancólicos.
E lá estava Alecsander diante daquele grande lago, observando as pequenas ondulações da água, refletindo sobre as coisas que aconteceram há uma semana, mas mesmo em sua contemplação, seus instintos não o abandonaram.
Alec erguia-se ao escutar o farfalhar da grama que acusava o aproximar de alguém e ficou bem arredio ao me ver. Havia receio em seus olhos, mesmo estando seus punhos cerrados na demonstração de que ele não se entregaria tão fácil.
– Alice!
Murmurou meu nome sem notar e eu apenas toquei minha mão direita sobre o meu coração e meneei minha cabeça como os antigos cavaleiros da Inquisição, ou espadachins que mostravam respeito pelo oponente.
– Não estou aqui para lutar.
Falei em tom calmo, esperando a permissão para me aproximar dele e notei-o sentando novamente à relva úmida pelo orvalho noturno e voltar a contemplar o grande lago. Não tive mais cerimônias e fiquei diante dele. Alec suspirou e me observou por um longo tempo e seus olhos não conseguiram desvencilhar desde então.

– Houve uma briga. Uma briga entre três pessoas. Pessoas que saíram feridas e que trouxeram confusão às lembranças que elas possuíam. Houve uma conversa. Uma conversa entre duas pessoas. Pessoas que não se conheciam, mas que sentiam que isso era uma mentira. Houve duas pessoas. Duas pessoas que viviam separadas. Que tocavam suas vidas. Sem saber que uma existia para a outra. Houve uma pessoa. Uma pessoa que trabalhava para o F.B.I. Que possuía uma missão e que nunca tinha falhado. Houve uma pessoa. Uma pessoa que encontrou um pesadelo. Um pesadelo em forma de Arcanjo que prometeu dar um nome. Um nome que ela desejava. Houve uma pessoa. Uma pessoa que estava em um hospício. Contida em uma maca por ver a realidade que ninguém enxergava. Houve duas mortes. Duas mortes de pessoas queridas. Sangue espalhado pela casa e uma criança traumatizada…

Alec fechava os olhos sentindo seu corpo estremecer, escutando aquelas palavras que vinham tão baixas que o remetiam a um passado. Um passado que aos poucos iam se encaixando em sua vida e que o fizeram continuar as palavras que eu estava para continuar.
– Houve um casal que possuía dois filhos. Que estavam felizes por a caçula não ter mais pesadelos. Houve um casal que uma semana antes da noite de natal cortou os medicamentos que faziam a pequena Alice dormir de forma tranqüila, sem pesadelos. Houve um casal que na noite de natal escutou o grito de Alice e quando a encontraram viram um pesadelo. Houve uma noite que o sangue pintou as paredes da casa que uma criança olhou em meus olhos totalmente apavorada. Houve uma noite em que vi o sangue de nossos pais em minhas mãos. Que tive que abandonar a casa. Que tive que abandonar a minha irmã. Clamando a Deus que os pesadelos dela não a matassem. Houve uma noite que uivei para a lua, me amaldiçoando por não poder mais proteger a minha irmã de sues pesadelos.
Escutei cada palavra que ele dizia e Alecsander acabava de me dar a peça que faltava. As coisas que eu não me recordava por conta dos medicamentos ministrados para conter o que parecia ser apenas loucura e devaneios de minha parte. O monstro que matou minha família era meu próprio irmão. Um irmão que ficou desaparecido por temer me ferir, achando que eu estaria melhor nas mãos dos médicos que me dopavam e me mantinham longe dos meus pesadelos. Eu podia sentir o peso que ele sentia em seu coração. Podia sentir toda aquela angústia que corroía a sua alma. Toquei em seu ombro e Alec despertava daquele transe a que estava submetido e a respiração do rapaz ficava descompassada. Pude ver lágrimas brotejarem de seus olhos enquanto a voz vinha embargada com a imensa culpa que agora ele sentia ao se recordar de tudo e ver diante dos olhos aquela que possuía o mesmo sangue que ele possuía.
– Perdoe-me Alice! Eu falei para eles! Falei que eles não deviam cortar o sonífero! Eles acharam que você estava curada!
Alec cerrava os dedos no capote naval que eu usava e abaixava a cabeça com o peso que sentia em seu coração.
– Eles não compreendiam. Não acreditavam em minhas palavras! Eu tentei Alice! Eu juro que tentei. Eu tentei a proteger quando escutei você gritando. Jurei te proteger e então não vi mais nada. Só me lembro de ter ficado furioso. Só me lembro de ter visto seus olhos. De você encolhida e de ver sangue em minhas mãos. Mãos que na época me deram medo. Sangue! Havia sangue espalhado por toda a casa e eu fiquei com medo. Temi quando vi nossos pais mortos. Perdoe-me, Alice! Perdoe-me!

Abracei Alecsander naquele momento. Aquela experiência foi traumática para ambos e agora tudo estava esclarecido.
– Você não tem porque pedir perdão.
Falei em tom baixo, respirando fundo. Tantas coisas aconteceram depois daquele evento e se aquilo não tivesse acontecido, talvez hoje eu estaria morta e Alecsander teria sido morto pelos demônios que tão bem me conhecem.
– Você não teve culpa, Alecsander. Nunca teve!
Os pais deles nunca deveriam ter deixado de lado o sonífero que ela tomava. Deixei meu irmão chorar. Ele finalmente expurgava os demônios que o atormentavam, sem dizer o porquê de tal tormento.