Misa abriu as longas asas alvas outrora arqueadas. Lambeu as penas ensangüentadas e sorriu com um corte incomum nos lábios. Um sorriso de alívio, um sorriso incerto de desafio. Ele fitou Ava, sentado displicentemente sobre uma coluna de pedra que ruía fazia anos. Ava vestia-se de vermelho, uma armadura de véus e seda escarlate, e as longas asas esticavam espreguiçando-se. Ele as sacudia, não havia ferimento. Passou a mão nos cabelos lisos e negros, curtinhos. Os olhos fitaram Misa, da mesma forma profunda. A boca rasgou-se também e as gotas de suor escorriam pelas têmporas pálidas. Misa arriscou um sobrevôo até Ava, arriscou um empurrão fazendo o anjo de vermelho cair de uma altura considerável do prédio que estavam.
Eram 75 andares e Ava mergulhava sonolento. Misa observava de cima, com as mãos à cintura fina. Era um corpo franzino e comprido. Os olhos eram que chamavam a atenção, a íris não existia, não existia sequer pupila… Era simplesmente o branco dos não-olhos de Misael. Ele continuava sorrindo enigmático apreciando a queda de Ava que deixava um rastro e um cheiro de morte muito forte, muito peculiar no ar.
Ava em sua queda fechava os olhos devagar, os velhos olhos rubros, olhos que a muito viam o que não podiam ver nunca. Ele abriu os braços e o Vento era a melhor coisa que sentia agora. O corpo alto parecia um projétil. A boca gritava, gritava antes de esmagar-se ao chão e virar pó… Ele não se salvou, ele quis cair… Morrer… Misael sorriu.
A asa fora curada, como se nada houvesse acontecido. Ele também havia gritado um momento depois de ouvir o silêncio de Ava quando seu corpo encontrou-se com a solidez do chão. Gritou de prazer, nostalgicamente, pronto para renascer… Conteve-se no seu lugar, criou um casulo com as asas agora manchadas de vermelho. Não de sangue. Ele viu uma fita de seda vermelha adornar o pulso moreno de uma belíssima jovem e quis consumi-la, quis tragá-la, quis matá-la.
Todo o contorno do corpo de Misael fora redesenhado. Uma aura rubro-alaranjada como o fogo queimava despedaçando suas vestes, levando por terra seus joelhos e as pedras de suas roupas… As pedras azuis de sua patente. Os olhos transparentes tomaram forma, eram azuis como o céu… O corpo branco e nu de Misa exibia as cicatrizes da vida, da culpa e seus ombros estavam em carne como a sua boca.
Ele não se desesperou, era chegada a hora e ele iria, mesmo que o coração de cristal fosse despedaçado. Ele havia matado Ava, o companheiro de verdade, era Avael, e ele havia matado o anjo rubro. Ele viu seu percurso e nada pode fazer, também era chegada a hora dele partir, de seu corpo virar fumaça e espalhar-se. Nunca subir, nunca descer, mas espalhar-se… Misa lembrou-se de recitar, lembrou-se apenas de uma coisa dentre as muitas que deveria lembrar, mas nunca quis. Deu espaço a um simples recitar.
– Eu o tive como meu Irmão, um irmão que eu invejei por toda a vida. Agora que consegui eliminar a minha inveja eu não estou pronto para renascer, estou pronto para desaparecer e não me espalhar. Não me arrependo. Não me arrependerei nunca, pois quem se arrepende em favor de homens não tem o perdão de Anjos. Perdoe-me meu Irmão, e me congele…
Ele não foi congelado, também não recebeu perdão de ninguém… O corpo fora levado depois que o coração fora flechado. Uma flecha de fogo penetrou e fez sangrar o coração de cristal de Misa e o nome do dono da flecha era Avael…
Minhas asas se fechavam junto ao meu olhar.
Mesmo estando tão longe, era difícil não escutar.
De não sentir.
Avael partia…
Misael partia…
E aqui deixo ao alcance de todos o relato de outro Anjo…