No princípio, o Nada existia em sua completude.
Mas a eternidade lhe pareceu um martírio para sua solidão.
Em seu desejo de ter companhia, o Nada se partiu em dois e seu lado contrário ficou com características opostas ao que possuía.
Muitas coisas foram criadas desde então, mas assim como foram criadas, elas conheceram a destruição.
Para que houvesse equilíbrio, o Nada e sua segunda metade, o Tudo, compreenderam que deveriam agir em conjunto.
— Para que haja o princípio, o fim deve existir. Para que haja a destruição, a criação deve surgir. Jamais haverá equilíbrio se apenas uma das partes reinarem. Nossos corpos tornam-se uno e que fique firmado pela existência que somos o Caos.
Desde então venho criando, destruindo e recriando os mundos em minhas criações e por muito tempo a paz reinou.
Hoje, meus olhos se abriam desconfiados. A escuridão e a fumaça de meu corpo sentiam a brisa da discórdia berrada aos ventos longínquos de onde eu me encontrava. Seu pranto estava desolado, mas carregava consigo a fúria de várias nações que repudiavam o destino oferecido na busca de enganar o prazo final. Elas não compreendiam a lógica do equilíbrio, achavam injusta toda a destruição. Uniam-se de tempos em tempos para me confrontar e a mim nada restava além de despertá-las em seus momentos finais, mas alguma coisa parecia diferente. Algo mais havia sido criado, e qual não foi a minha satisfação ao perceber que encontraria duas novas criações.
— Levante-se representante da Destruição. Estamos aqui para enfrentá-lo e destruir tudo o que representa. A Humanidade não precisa mais de você e de seus anseios e tampouco se submeterão caladas à sua voracidade. Levante-se Caos e conheça os novos guardiões da Humanidade.
Meu riso era baixo e sombrio ao que fui me apresentando aos poucos aos dois que bradavam a minha destruição. Eram belos e portentosos em suas apresentações. Seus corpos lembravam as formas como me apresentei tantas vezes à humanidade. Em suas mentes confusas, os humanos representaram inconscientemente minhas duas partes que já viveram separadas e agora me culpavam de ser apenas o Nada. Não compreendiam que o planeta não os sustentaria se houvesse apenas uma de minhas partes. Que o mundo que viviam se esgotaria e morreria, ceifando suas vidas sem dar-lhes uma nova oportunidade. Tentei mostrar isso aos novos dragões, mas suas mentes eram manipuladas pelas pessoas que os criaram. E rodeando-os mais um pouco, percebi suas verdadeiras intenções.
— Não conseguirão o que desejam. Partam antes que suas almas sejam alquebradas.
Primeiro vieram os rosnares, depois pude perceber cada escama daqueles belos corpos se eriçarem no antecipar do combate. Ambos partiram para cima de mim com ferocidade buscando arrancar a minha vitalidade. Usavam todos os conhecimentos que cedi à humanidade. Mostraram vigor no combate, enquanto usavam magia e força, inteligência e brutalidade. Foram anos de combate…
Percebi que aquelas novas entidades, assim como eu, não dependiam das crenças e da fé de seus criadores. Os dragões eram movidos pelo desejo dos humanos em me destruírem e não parariam até minha completa destruição. Não percebiam, no entanto, que durante os anos em que arrastamos o nosso combate, metade da humanidade deixara de existir em nossa passagem. Por mais que eu tentasse trazer os ingratos de volta, o desequilíbrio tornava-se cada vez maior.
— Não percebem o que fazem? Em seus desejos cegos, destroem aqueles que deviam proteger. Trazem a morte dos que lhes criaram e se não pararem haverá apenas destruição.
— Cale-se avatar da destruição. Tenta confundir nossas mentes no próprio Caos criado por sua parte. Não somos nós que findamos a criação, mas é sua passagem que traz a morte da humanidade. Eles não desejam mais a sua presença, nem tampouco as suas vontades. Cale-se e morra avatar da destruição. Malevolência que inunda os corações. Deixe a humanidade viver em paz.
Ri e ao mesmo tempo me senti triste, pois nas palavras deles a ingratidão da humanidade mostrava-me a ingenuidade. Minhas palavras se perderam no tempo e eles não se lembravam mais que para o Tudo existir, o Nada devia co-existir. Meus ataques que antes eram mais defensivos se tornaram pura agressão. Não tive mais piedade daqueles novos dragões. A cada novo grito arrancado e sangue derramado, exterminei boa parte das nações, tornei-os cegos por um bom tempo e quando o Nada se tornaria mais uma vez soberano, entrei na alma dos poucos humanos que sobraram.
— É a nossa chance para destruí-lo.
Vociferou o grande dragão que representava o mundo ocidental, assim como pude sentir o temor começar a crescer nos corações dos humanos perante essa possibilidade ínfima.
— Sim, mas se fizermos isso, estaremos destruindo aqueles que devemos proteger e nosso propósito não terá passado de uma farsa.
Sorri, pois o grande dragão que representava o mundo oriental pareceu-me mais sábio em seu pensar. Não havia como negar que ambos poderiam vir a se tornar o novo Caos, quando fosse chegada a minha hora, mas ambos ainda tinham muito o que aprender. Por um tempo eles rondaram a humanidade, esperando que eu saísse dos corações de seus protegidos…
— Coloquem-no para fora!
Estava cada vez mais divertido observar a angustia de todos, mas era necessário que eu ficasse mais um pouco, para mostrar tanto aos novos dragões e à humanidade que a minha presença era necessária. Os humanos não compreendiam como poderiam me tirar de seus corpos. Não queriam se lembrar que a culpa era deles. Sempre fora. Mas pude perceber que os dragões foram despertados quando eles menos esperavam…
— Humanos! Grande foi a nossa batalha contra o Caos, mas antes que pudéssemos destruí-lo, ele buscou refúgio em seus corações. Não podemos destruí-lo enquanto ele estiver presente em suas almas ou nosso propósito será corrompido. Fica na incumbência de vocês conterem o Caos enquanto nos recuperamos para uma próxima batalha. Não os deixaremos sozinhos quando mais uma vez o Caos reinar… Nossos poderes se farão presentes em Heróis da humanidade quando precisarem de nossas forças… Descansem e prosperem… Lembrem-se que o Caos está preso em seus corações…
Entristecia-me aquelas palavras ao ver os Dragões do Oriente e Ocidente partirem para o plano etéreo. A humanidade fora abandonada pelos seus campeões, ficando a mercê de minha presença em seus corações. Um golpe baixo de minha parte para despertar os dragões que foram criados por minhas criações. A nós restava o descanso e à humanidade… O temor do que estava por vir…
Este foi um texto introdutório para um antigo projeto de antologia, envolvendo o caos dentro da humanidade, dragões e herdeiros dos poderes destes dragões