O Gato ainda tentava espantar aquele desnorteio que o silvo do Falcão causara em sua alma e mente. A Rainha sorria e deixava de observar que fim teria levado os restos mortais do Andarilho, até porque havia outros visitantes que perambulava no Abismo. Alguns como espectros perdidos, outros como meros observadores, mas ainda havia aqueles que moviam peças para o novo recomeço do descomeço. Em outros reinos clamariam como as linhas de Destino, o inexorável senhor das histórias que foram, são e serão contadas; já aqui em minhas páginas, o Destino se entremeia aos pensamentos de minha Rainha, tomando rumos inesperados ou quem sabe esperados, rumos estes que voltam em ciclos, pois as páginas não devem ser encerradas enquanto há um prisma não visitado.
— Não tente se livrar do desnorteio, meu caro amigo Gato, pois se ele ainda o persegue é porque há muito a ser visto em sua mente. – gralha o Corvo momentaneamente.
O Gato grunhe do fundo de sua alma mostrando suas presas para o Corvo.
— Como se eu não conhecesse o nosso dom da visão… Pandora também o possuía, mas era uma garota perdida… O que você puxou do Reino dos Mortos? Diga-me! — Vociferou o Gato à ave de plumagem negra como o Abismo.
— Apesar de caminhares no Abismo, sabe bem que seu Reino é dos Mortos, meu estimado felino. O que lhe mostrei é apenas uma parte de algo que não houve um fim – O Corvo crocita baixinho tomando a forma de um ser tão enigmático quanto o Gato.
— E quanto mais você lutar com o presente que o Corvo quer lhe dar, mais fortes serão suas visões – Silva o Falcão com desdém, já que ele não gostava de ver a balança pender tão desequilibrada daquele jeito.
A Rainha então se aproxima, agora com um olhar sereno e observador. O silêncio em seus lábios pareciam mais longos do que o de costume, deixando os pelos do Gato um tanto quanto eriçados.
— Acabe com isso — o Gato ronrona tentando se controlar e mesmo sem mover os lábios ele podia escutá-la.
“Não é isso que deseja, meu estimado Gato. Jamais fora isso que desejara”…
A Rainha respira fundo deixando seu rosto tão próximo ao do Gato que ele não pode evitar…
Sua visão nublara, enquanto seu coração acelerava.
O gato reconhecia aquele Reino, ele podia ver o quanto ele fora revirado por conta das cartas oras amassadas, ora rasgadas. Havia resquícios de ódio e incompreensão; dúvidas geradas por passados que não pertencera ao qual causara tamanho estrago. Ele podia sentir que aquela presença fora a outro reino; um reino imparcial em grande parte do tempo; o Gato chegou a ouvir rogares de maldições, os quais pareciam…
Um silvo e mais uma vez era interrompido, antes que sua visão alcançasse tudo o que estava escondido…
— Por que interrompe desta vez, ave do Reino Espiritual?
O Gato não percebia em seu próprio respirar, que tanto ele quanto a Rainha exauriam suas forças naquele breve passear. As visões, em Arcádia, são viagens no tempo e no espaço. Alguns se perdem e ficam mergulhados para sempre nessas visões; outros perdem suas vidas e não percebem que isso lhes ocorreu e alguns poucos viram páginas deste humilde livro que tenta tudo lhes contar.