Podem escutar os tambores? Podem escutar a voz retumbante do Palácio que diz jamais ter possuído um dono e que nem mesmo o Rei que o governara sequer mandou nele? Eis que minhas linhas agora os conduzirão no Abismo, onde sonhos, idéias, imagens, sons e desejos não migram para as profundezas pelo simples medo do que encontrarão por lá. Mas, na verdade, estaria eu mentindo ao dizer que os exploradores, que lá mergulham, deixam de lado aquilo que carregam; seja feita a verdade que isso tudo é mais complexo e creio que talvez seja por isso que o Gato seja o guia que melhor poderá explicar as linhas em minhas páginas vindouras.

— Huuummm… Vejo que ainda carrega em ti a esperança. Certa luminescência que possa vir a te ajudar futuramente – ronronou belicosamente o gato que agora rodeava o explorador que ali se encontrava.
Divertia-se um bocado com o cavalo assustado, pois não muito longe os caminhos eram iluminados.
Havia um rosnar baixo que ecoava no abismo, um rosnar um tanto quanto ferido.
— Podes escutar explorador?

“Esperava que já tivesses aprendido a não agrilhoar-te a nada, ou a ninguém.”

— Esta é a voz da liberdade que se tornara um grilhão – os olhos do gato brilhavam traiçoeiros e o sarcasmo denotava-se fácil em seu ronronar.

Ele caminhava calmo, sempre a rodear; cavalo e cavaleiro, nobre homem este que sentia na alma todos os ferimentos; toda a raiva que parecia crescer nas frustrações de seus desejos desfeitos.

— Por que ainda desejas chegar a uma resposta sobre a negritude que se encontra a alma da Rainha e dos prantos dos filhos de Arcádia que se perderam? – o Gato começava a caminhar sem nem mesmo olhar para trás. Sabia, no entanto, que se o cavaleiro errante quisesse se encontrar; era bom ele se apressar.

— Cada nuance; cada mensageiro possui um significado neste Reino. Cada palavra, cada respirar, possui seu momento derradeiro e eu diria que certeiro – o ronronado parecia uma risada debochada, mas o Gato parecia caminhar em enorme respeito nas negras trilhas daquele lugar.

— A Rainha é o Caos, belo e perfeito. Em sua granditude, confunde, desperta sentimentos. É capaz de roubar almas, sanidade e desejos. Levando os que a amam por caminhos tortuosos, mas eu a respeito.

O felino saltava sobre uma pedra e se mantinha a observar o Abismo em seu respirar.

— Uma vez, ela se proclamou como um espelho e por mais que tentaram convencê-la do contrário, ela refletiu a alma de quem a desafiava… Os ferimentos que a causavam, causavam no fim das contas a si mesmos…

O olhar ferino em chamas amarelas se refletia no escuro momento, se direcionando para o cavaleiro…

— E se tu olhares, durante muito tempo para o Abismo, o Abismo também olha para dentro de ti. – Ele sorri satisfeito, se relembrando de um pensamento de Nietzsche. Pois ainda ficaria um tempo, observando o cavaleiro que era golpeado por suas palavras que abriam caminho para que o Abismo adentrasse na alma do andarilho.

— O que lhe resta? – Murmura a Rainha, deslizando os dedos em minhas páginas, com os pensamentos a vagarem nas sombras de Arcádia.

Nem flechas, espinhos, pragas ou pecados, podiam atingir o jovem errante, mas as verdades felinas poderiam vir a causar grandes estragos…Com um suspiro mais forte a Rainha ergue seus olhos em confronto aos olhos de jade, que mesmo distantes podiam enxergar aqueles brilhos vermelhos, quase sangüíneos, ganharem tons amarelados.

— Fizeste bem teu serviço… Lacaio…

Pude ver minha Rainha mais uma vez suspirar… E senti o peso em minhas páginas ao que ela desviou seu olhar daquele que ela chamara de Lacaio…

O Abismo esfacelava em seus dedos as trilhas que não mais viria a percorrer…